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Pinceladas vermelhas
- 20 de janeiro de 2017
- Por: Flávia Lippi
- Categoria: Vida pessoal
Minha mãe sempre entendeu quando via a Renata sentadinha de frente para um enorme quadro negro do garibaldo. Era a brincadeira da semana: eu ficava de professora escrevendo no quadro e a linda Reca, de aluna, aprendendo as lições da semana. O treino era para permitir que eu exercesse meu papel de irmã mais velha. Se ela errasse tinha que me emprestar a pulseira de purpurina mais linda do armário.
Depois a Reca era o pic esconde. Tinha que me procurar até achar. Isso parece que funcionava como brilho das estrelas. Ela me achava e eu me sentia achada pelo resto da vida. A mamãe entendia como era esse sentimento. E adorava colar estrela no teto do quarto. Aquelas que brilhavam a noite. E, então, muitas vezes montávamos um verdadeiro acampamento com lençóis, vassouras, lanternas, e eu tinha certeza, se colocasse meu pé para fora, sentiria aquela graminha com sereno.
Antes de dormir ela cantava. Ou inventava histórias, ou coloca lindos discos de vinil com obras clássicas, e assim descobri a vida de grandes artistas como ela. Tem mãe que ensina o filho a ter medo das coisas e talvez esse seja a maior benção que tenho de minha mãe. Me ensinou a não temer nada. Eu fui criada para não temer nada: de coxinha de padaria a viagens solitárias pelo mundo. Me deixava brincar na rua, nadar no mar, comer besteiras na cantina da escola. Hum… coxinha de queijo do Pitágoras. Jamais esquecerei.
O resultado disso é que até hoje me jogo na vida. Quando o abismo está próximo, acelero e caio do outro lado com meu paraquedas. Já segurei no dente o resto de força que me restava, já perdi minhas unhas e cabelos segurando o tudo de sonhos que estavam dentro de mim. Fácil. Tudo nasce de novo, inclusive eu mesma.
Tenho uma coragem absurda e uma curiosidade profunda a respeito da minha vida interior. E me pergunto: quantas mães ensinam isso a seus filhos? Tive sorte. Hoje tenho um trabalho que me dá uma enorme alegria. Hoje troco cebolinhas com papai e cuido dos temperos de mamãe. Ela não me ensinou a dar um mortal na piscina, mas também não me proibiu de aprender. Me ensinou a mergulhar nas cores, na vida, nas coisas coloridas do planeta. Ela me ensinou a inventar um mundo rico, enorme, possível dentro da minha cabeça. Me ensinou a viver com coragem dentro de mim, a ser amiga e ouvinte dos neurônios, fígado, coração e entranhas.
Tenho certeza de que comecei da maneira mais difícil. É mais corajoso quem não tem medo de voar pelo mundo ou quem aguenta ficar dentro de si? Aprendi ambos. Sou corajosa e tenho o cérebro profundamente colorido. Me sinto boba perto de pessoas que falam de mega coisas e assuntos e me sinto um gênio quando vejo tanta gente que perde um dia inteiro para escrever um simples e-mail sentimental ou não sabe o que dizer numa conversa íntima.
Quem é que vai te ensinar ter essa delicadeza de sentir? Quem é que vai te dar ferramentas para olhar para as coisas o tempo todo como se elas fossem encantadas e não simplesmente coisas? Durante muito tempo eu respondi: escrever não se aprende, se torna. Mas descobri que foram as pinceladas vermelhas, que na verdade é minha mãe, que me ensinaram a não ter medo de atravessar o rio enorme e profundo da história que inventamos. Dentro da barraca, no ateliê, diante das telas e cores. Ela me deu a capacidade de sonhar, o resto do mundo agora é comigo.
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*Texto postado no meu antigo blog em 02/12/2009.